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COM SPOILERS DO LIVRO

Ensaísta francês investiga 'O Assassinato de Roger Ackroyd' em livro

Pierre Bayard analisa os furos da trama criada por Agatha Christie de forma bastante inventiva

SÉRGIO AUGUSTO

ESPECIAL

Quem matou Roger Ackroyd? Os que leram ou ouviram falar de O Assassinato de Roger Ackroyd sabem a resposta. Se você nunca leu, mas pretende ler o clássico romance policial de Agatha Christie, é bom parar por aqui, pois vou ter de revelar a identidade do assassino daqui a pouco. À maneira de Hercule Poirot, o Sherlock de Agatha Christie, vou remanchar um tempinho, desfiando alguns prolegômenos. Publicada em 1926, O Assassinato de Roger Ackroyd é uma das primeiras obras da autora, também na preferência dos leitores.

Só perde para O Caso dos 10 Negrinhos e Assassinato no Expresso do Oriente, se de fato merece crédito a eleição promovida pela home page da escritora (www.geocities.com/Athens/7836/index.html).

Quando seu enigma é lançado, Poirot, com presumíveis 87 anos, já está aposentado, cultivando abóboras nos arredores de King's Abbott e sem a companhia do seu Watson, Hastings, recolhido a algum ponto da Argentina.

Quem não se liga em Agatha Christie nem tem especial apreço pela literatura policial tende a distinguir o caso narrado pelo dr. James Sheppard como a magnum opus da escritora. Por quê? Por sua originalidade. Afinal de contas, quem matou Roger Ackroyd foi o narrador do romance.

Originalidade, em termos. Maurice Leblanc já quebrara o tabu em A Prisão de Arsène Lupin, a história que abre Arsène Lupin, Ladrão de Casaca. De qualquer modo, Agatha Christie acabou ficando com a fama de haver desrespeitado a mais sólida convenção dos romances de mistério, motivo para incontáveis estudos, assinados, entre outros, por Roland Barthes e Umberto Eco. Edmund Wilson também meteu sua colher, embora seu célebre ensaio, Who Cares Who Killed Roger Ackroyd?, publicado em janeiro de 1945 na revista The New Yorker, não fosse um panegírico, tampouco uma exegese, mas um acerto de contas com as histórias de detetives, cujo sucesso pusera em questão em outro ensaio (Why Do People Read Detective Stories?) publicado três meses antes.

Wilson não conseguia achar a menor graça naquilo que os franceses chamam de roman noir e gente respeitável como André Gide e T.S. Eliot, para citar dois contemporâneos do genial crítico americano, tinha em alta conta.

Wilson respeitava Poe, que a seu ver transcendia o gênero, reconhecia a originalidade de Conan Doyle e a graça de Chesterton, mas considerava o resto subliteratura. No que extravasou sua indiferença, uma avalanche de cartas e artigos (escritos por Jacques Barzun, Bernard De Voto, Somerset Maugham e Raymond Chandler) convenceu-o de que precisava ilustrar-se um pouco mais. Mas nem depois de passar dez semanas devorando os seis autores mais vivamente recomendados pelos leitores da New Yorker - Chandler, Dorothy L. Sayers, Margery Allingham, Ngaio Marsh, Michael Innes e John Dickson Carr - mudou de opinião. A rigor, gostou apenas do Chandler de Até a Vista, Querida, a seu ver mais próximo de Hitchcock e Graham Greene do que de Dashiell Hammett.

Uma das birras de Wilson com as "histórias de detetive" era o acordo tácito existente entre os autores e os resenhistas, pelo qual estes não podiam, em hipótese alguma, revelar o desfecho da história nem deixar escapar o nome do assassino. Isso, argumentava Wilson, não é justo com os resenhistas, que ficam tolhidos em sua análise, nem com os praticantes de outros gêneros de ficção, que não se beneficiam da mesma proteção.

É praticamente impossível analisar um relato como O Assassinato de Roger Ackroyd e avaliar a engenhosidade de sua construção e os eventuais furos de sua trama sem estragar a surpresa do leitor. Um ensaísta francês, Pierre Bayard, conhecido por um estudo sobre o paradoxo do mentiroso em Laclos e Maupassant, passou por cima desse obstáculo, desconstruindo o romance de forma assaz inventiva, cujo resultado - Qui a Tué Roger Ackroyd (sem ponto de interrogação) - foi considerado pelo suplemento literário de Le Monde o mais excitante romance policial do ano e um ensaio sutil sobre a narrativa, a leitura e seus limites e os perigos dos delírios de interpretação.

No livro de Agatha Christie, Poirot induz o dr. Sheppard ao suicídio. Uma overdose de Veronal resolve o problema. Na releitura de Bayard, quem passa por criminoso é Poirot. Não por ter sido ele o verdadeiro assassino de Roger Ackroyd, mas por levar à morte o homem errado. Depois de revirar o romance pelo avesso, examiná-lo por todos os ângulos, esmiuçar cada detalhe de sua arquitetura, de montar, enfim, uma investigação paralela à de Poirot, o "detetive" Bayard conclui que o Sherlock de Agatha Christie abusou de sua delirante imaginação, cometeu erros de interpretação - e aponta outro culpado, cuja identidade deixarei em suspenso, pois não faz nem três semanas que Qui a Tué Roger Ackroyd (Editions de Minuit, 172 págs., 95 francos) chegou às livrarias francesas.

Bayard levanta uma série de questões (seria o engano de Poirot consciente? Teria Agatha Christie repassado aos leitores a incumbência de desvendar o mistério ou será que também foi vítima do delírio de interpretação de Poirot?), abre novas pistas investigativas e examina as relações da autora com alguns personagens, notadamente com a irmã do dr. Sheppard, Caroline, velhinha tinhosa, curiosa a não mais poder, a perfeita detetive de gabinete; ou seja, o protótipo de Miss Marple, conforme a própria Agatha Christie admitiu em sua autobiografia. Comparações com outros romances, posteriores ao caso Roger Ackroyd, ajudam a esclarecer certos pontos obscuros.

Bayard não descarta sequer a última aventura de Poirot, Cai o Pano, publicada em 1975, na qual o detetive, semiparalítico, usando peruca e bigode postiço, já não era apenas uma sombra grotesca de si mesmo, mas o seu oposto: um criminoso condenado a morrer.

A velha dama da literatura policial, morta há 22 anos e só com menos leitores que a Bíblia e Shakespeare, não desencarna das estantes e das mesinhas-de-cabeceira. E não apenas por conta de reedições. A Record está lançando duas obras inéditas dela: Enquanto Houver Luz (textos curtos publicados em obscuras revistas de histórias policiais, nos anos 20 e 30) e Café Preto, originalmente uma peça teatral, escrita em 1930 e adaptada para livro pelo biógrafo da escritora, Charles Osborne. Neste romance, Poirot investiga o assassinato de cientista que desenvolvia a fórmula de explosivo nuclear. Best sellers, com certeza. Até porque seus admiradores, há muito à míngua de uma investigação de Poirot, não contavam com essa dupla surpresa.

Retirado do site: O Estado de S. Paulo


Enviado à mailing por May em 14-08-2003