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..:: O Sumiço de Agatha ::..

Pete, conforme eu *não* havia prometido, lá vai minha contribuição para seu concurso de redações. Eu fiquei em dúvida quanto a um limite de 20 linhas, mas como in dubio pro reo...
Flávio


Os dois homens tomavam o chá da tarde na velhíssima Estalagem da Estrada, em Cantuária, que já há bem mais de cinquenta anos fora ultrapassada pela cidade e adaptara seu salão de refeições à nova clientela de citadinos, ao invés de viandantes. Seus quartos no entanto permaneciam abertos, esperando com antecipação os hóspedes endinheirados que viriam para o Grande Prêmio de Turfe, no final de semana, mas que já começavam a chegar. Porém as duas mulheres que se aproximavam de sua mesa em qualquer sinal exterior revelavam uma paixão por jogos ou cavalos.

- Sr. Connor, que grata surpresa!

- Sra. Jones, que belo encontro! Seria muita impertinência nossa convidá-la, e sua amiga, para tomar chá conosco?

- Absolutamente, os senhores nos salvam de uma tarde muito aborrecida. Quero apresentar-lhes a Srta. Neele, de Iorque. Ela perdeu recentemente sua mãe e está de passagem por aqui, procurando um lugar para instalar-se definitivamente que a faça esquecer-se da tristeza dos últimos anos. Nossos quartos dividem a mesma parede aqui na Estalagem.

A Srta. Neele efetivamente tinha a aparência de quem estava muito disposto a divertir-se para ultrapassar sofrimentos recentes, embora sem saber exatamente o que queria. Olhou com mais curiosidade do que timidez os dois homens que se levantaram para cumprimentá-la.

O Sr. Connor tinha o ar equívoco de um caixeiro viajante, e sua indumentária provavelmente seria aquela que um compraria caso houvesse subitamente ganho muito dinheiro. Suas maneiras eram corteses, mas sem finura.

- Permita-lhe que lhes apresente meu amigo, Sra. Jones e Srta. Neele. Este é o Sr. Wilkins, de Londres, que também está aqui na Estalagem por hoje, mas retornará amanhã, para voltar para o Prêmio. Eu mesmo estou residindo na Pousada do Carvalho, junto à Praça Central, faz três meses.

O Sr. Wilkins era de idade madura, de elegância que contrastava com seu colega. Tinha olhos vivos e extremamente inteligentes, e ao contrário da Srta. Neele, era só curiosidade que neles havia, nem mitigada e nem disfarçada.

Após se sentarem e aguardando o serviço, ele perguntou:

- A Srta. passou toda a vida em Iorque, Srta. Neele, residindo com sua mãe?

- Não, Sr. Wilkins, eu morei um bom tempo em Londres. Voltei para casa há cinco anos, quando mamãe começou a enfraquecer-se pela doença. Eu era sua única filha.

- Percebi que a senhora não fala com o acento de lá. Eu conheço bem a cidade, embora não me lembre de ter ouvido o nome de seus pais. Eles moravam mesmo na cidade?

- Não, no campo, próximos a ela. A Srta. Neele estava insegura.

- E qual era sua ocupação em Londres, Srta. Neele?

- Eu era... professora.

- Tessa foi professora de história, Sr. Wilkins, não é fantástico? interrompeu a exuberante Sra. Jones. Sempre que caminhamos pela cidade ela me conta dos acontecimentos vinculados a cada um dos lugares históricos.

- Vocês se conhecem há muito tempo?

- Não, há apenas duas semanas, quando ela chegou aqui. Eu já estou instalada há mais de um mês, enquanto aguardo o retorno de meu marido. Para mim é uma alegria sair de Londres, que eu aproveito sempre que possível. Não pela cidade, é claro, mas pela terrível companhia de minha sogra. Ah ah!

- E a Srta, Srta. Neele, não quis se estabelecer na Capital?

- Não, eu preferi não arriscar encontrar pessoas conhecidas. Quero dizer, preferi começar uma nova vida, sem laços com o passado.

Era evidente que os únicos interessados na conversa eram o Sr. Wilkins e a Sra. Jones, que também ardia por entender melhor o enigmático cavalheiro:

- O Sr. trabalha com o quê em Londres, Sr. Wilkins?

- Digamos que eu atue no círculo financeiro, respondeu evasivamente. Era óbvio que ele não queria dar detalhes seus, embora tão ansioso para conhecer os dos outros. Tenho contato com diversos bancos da cidade, embora não trabalhe especificamente para nenhum deles.

- Deve ser uma vida bastante agitada, Sr. Wilkins.

- De fato, não é calma. Mas me permite viajar pela Inglaterra e encontrar pessoas maravilhosas como as senhoras. Embora eu creia, Srta. Neele- disse pensativamente- que já tenhamos nos encontrado antes.

- Não, não creio, não é possível, balbuciou ela, evidentemente perturbada. Não me lembro de jamais ter visto o senhor... E eu me lembraria... sim, eu não me esqueceria do senhor. Não, não me esqueceria.

O próprio Sr. Wilkins compadeceu-se dela e passou a conversa para os bolos e o chá, recebendo a entusiasmada adesão do Sr. Connor. A refeição prosseguiu mais amenamente, embora a Sra. Jones não deixasse passar oportunidade para questionar o Sr. Wilkins a respeito de pessoas e acontecimentos de Londres, quase sempre ligando-os ao nome do marido, atualmente embarcado em uma fragata da Marinha Britânica.

Ao despedirem-se, combinaram de jantar juntos mais tarde, com exceção do sr. Connor, que tinha assuntos importantes para tratar à noite. A Srta. Neele, após fechar-se em seu quarto, mandou dizer por um mensageiro à Sra. Jones que a desculpasse perante o Sr. Wilkins, mas não poderia comparecer por sentir-se indisposta.

Deitou-se cedo, mas seu sono intranquilo não a prendeu à cama por muito tempo. Ao dirigir-se para sua escrivaninha, notou um envelope passado por debaixo da porta, o qual revelou conter a seguinte mensagem:

Cara Srta. Neele,
fiquei grandemente impressionado com seu belo anel de ágata, muito semelhante a um que encontrei ano passado no fundo de um lago de peixinhos dourados. Gostaria de ter esse anel, Srta. Neele, e já lhe dou o preço que posso por ele. Tenho motivos para crer que a Srta. nunca em sua vida, embora lhe pudesse agradar muito, tenha presenciado um crime. Acredito que nos próximos dias ocorrerá um nesta estalagem, e pessoas de seu conhecimento provavelmente serão afetadas por ele. Embora não seja a Srta. a vítima designada, talvez ainda assim haja algum risco a sua situação.
Atenciosamente,
E.W.

Tessa Neele olhou para o grosso anel em seu anular esquerdo, e suspirou.

No dia seguinte, já na estação, o Sr. Wilkins recebeu de sua parte um pacote com o anel e um bilhete:

Caro Sr. Wilkins,
o anel é um preço barato pelo pagamento que me enviou. Receba-o com minha gratidão. Talvez um dia nos encontremos novamente; talvez um dia o recompre do senhor. Por ora, parto de Cantuária para um destino ignorado.
Atenciosamente,
T.N.

O Sr. Wilkins suspirou, e o bilheteiro do trem pôde ouvi-lo dizer: "Ah, as mulheres..."


Escrito por Flávio em 16-11-2003