HOME
 
Agatha Christie
 
Mailing List
 
ACBR

História
Integrantes
Textos
Projetos
Diversos
   

..:: Bolivian News ::..

"Bolivian News - Diário de Bordo"
CAPÍTULO 3 - O Trem da Morte - Dia 1


Wednesday, September 17th, 2003 - O trem

A manha da quarta-feira foi tranquila. Descansei até umas 08:45, depois um banho e um café, e saímos para comprar a passagem de trem e trocar alguns dólares por pesos bolivianos, ou simplesmente “bolivianos”. 100 dólares compram 772 bolivianos. Uma graninha razoável. Minha passagem no “Trem da Morte” saiu por 150 bolivianos. Cara, considerando os padroes do trem, que saberemos mais adiante.

(Aqui abro parenteses para explicar um pouco sobre o “Trem da Morte”. Ao contrário do que muitos pensam, ele nao tem esse nome por ser perigoso - bem, é, mas só um pouquinho. É conhecido assim porque no século passado houve uma epidemia de febre amarela na Bolívia, e esse trem era o meio mais utilizado para transportar as pessoas doentes para a fronteira, e receberem tratamento na divisa com o Brasil. Muitas morriam durante o trajeto de aproximadamente 18 horas entre Santa Cruz de La Sierra e Puerto Quijaro, na fronteira. Daí o nome. Hoje ele nao tem mais essa alcunha entre os bolivianos, mas continua sendo um mito para nós, que ouvimos todo tipo de história antes de chegar aqui.)

O trem tem 4 classes. Estranhamente, a 1ª é a pior de todas, onde as pessoas vao praticamente amontoadas, sem assentos, entre galinhas, porcos e muuuuuuuuitas caixas e sacos de farinha cheios de suas traquitanas. A segunda já tem alguns assentos, de costas uns para os outros, mas ainda é a casa-da-mae-Joana. A outra chama-se Pullman (é, igual ao pao de forma), onde viajam os bolivianos um pouco melhores de bolso, em assentos geminados, todos voltados para a frente. E a classe considerada VIP (a que eu comprei) chama-se Super Pullman. Sao dois vagoes com aproximadamente 60 lugares, com poltronas individuais, reclináveis, lugar para guardar a bagagem de mao, som ambiente (hehe, aguardem!) e serviço de bordo. Para eles, um luxo, por isso essa classe é ocupada praticamente por estrangeiros (mochileiros, aventureiros, religiosos ou malucos) e alguns locais que querem um pouco mais de conforto (se é que isso é possível, mas tudo bem!). Um vagao restaurante os separa das demais classes do trem, vigiados por guardas armados. O aspecto do trem lembra muito as linhas suburbanas do Rio ou Sao Paulo, aqueles trens caindo aos pedaços. Externamente, um susto.Nas estacoes as pessoas se amontoam, e quando o trem chega, tudo funciona automaticamente. Ou seja, cada um já sabe onde tem que subir, quem vai desengatar os vagoes para engatar com a máquina, etc. Nós ficamos perdidos, e tentamos acompanhar a turba.

Pois bem: chegando o trem, eu, que já estava esperando na estacao havia uns 40 minutos, logo de cara avistei no 1º vagao do S.P. (Super Pullman) as amigas Norueguesas de quem havia me separado na tarde anterior. Depois de um corre-corre pra despachar a mala maior, comprei uma garrafa de 2 litros de água e tratei de entrar logo. Logo de cara, o primeiro problema. Na minha poltrona (3V, ou “3 Veranda”, Janela 3) havia um casal de poloneses que estavam aventurando pela América do Sul (eles parece que andam em bandos, esses Europeus!). Ele arranhava um ingles arcaico, e até eu explicar que aquela era a minha poltrona, a moça do serviço de bordo chegou. O tapado havia comprado dois assentos de corredor, 6 assentos afastados um do outro. Ele estava no lugar certo, mas a mulher dele nao. Como nao queria criar problemas, cedi o lugar para a ariana. (nao sou tao maluco a ponto de, em pleno “Trem da Morte”, provocar a ira de um polones de 1,90m, magro como um bambu, mas com o cabelo raspado naquele penteado idiota do Ronaldinho, com roupa camuflada de milico, camiseta tipo recruta, bebendo água num cantil e com um facao daqueles do Rambo na cintura!!).Só que a maldita ficou na minha janela, e eu teria que ir para um corredor. Negociei em meu espanhol iniciante o assento dos funcionarios com a ferromoça, mas fui parar num lugar onde nao reclinava, bem atras do polones. (cade minha garrafinha de cicuta quando se precisa dela?). Despedi-me das anfitrias, e o trem partiu perto das 16:15.

Bem, aproveitei um pouco da paisagem (árvores, árvores, mato, mais árvores, árvores...) enquanto pude. Depois de uns 40 minutos de viagem, talvez percebendo que a mononotia dominava, um dos funcionários resolveu colocar uma música. Pensei: ”Agora vou conhecer um pouco da música boliviana!”. Mas, quando começou a tocar, quase elogiei sua mae. Ele me presenteava com a mais pura MPB (mér...cadoria para babacas): o clássico de MC Serginho, a “Eguinha Pocotó”! Eu, que sempre desliguei o rádio ou mudei de sintonia quando essa pérola ameaçava meu bom gosto, na Bolívia, sendo coagido a ouvir a Equina Maldita! A ela se seguiu uma seleçao completa, com a fina flor da música brasileira: “onda onda olha a onda” (Tchacabum?), Bonde do Tigrao, É o Tchan no Havaí, Leonardo e (socoooooro!) Zezé de Camargo e Luciano. Percebi, definitivamente, que estava no “Trem da Morte”! É isso que exportamos? Explica a decadencia.

Refeito do susto, e depois de um treinamento psicológico para nao ouvir essa música incidental (ou seria acidental?), comecei a batalhar a troca de lugar após uma parada num povoado onde outras pessoas embarcaram nas demais classes. Nas paradas, as pessoas, senhoras e crianças, muito sorridentes e amáveis, vinham vender de tudo um pouco: “chicha” (le-se “txitxa”, tipo um refresco de polpa) de frutas, paes dos mais variados tipos e recheios, “majadito” (um prático típico com arroz com coloral, ovos, charque ou frango), pao de arroz, pao com queijo, “cunhapé” (nao consegui identificar até agora). Tudo por 1 boliviano (cerca de 40 centavos de Real). Até gelo em baldes eles colocavam para que o refresco saísse geladinho! Nessa parada, o polones maldito se retratou do mal cometido com um comentário que seria meu aprendizado do dia: “Na Europa, temos tudo, mas mesmo assim nao somos felizes. Aqui, essa gente que parece nao ter nada nos recebe sorrindo, com uma felicidade que emociona!”. Um neo-nazista se emocionando. Os brutos também choram (era assim mesmo?). Ponto pra ele.

Saindo o trem, consegui uma poltrona no vagao da frente, proximo as 2N (lembram-se?). Elas contaram as peripécias da noite anterior, dizendo que ficaram num hotel péssimo por fora, maravilhoso por dentro, com ar-condicionado, frigobar e internet. Ahá, e eu que pensei que fosse tirar uma onda com elas! Fiquei caladinho.

Minutos depois, mais um susto! O trem parou no meio do nada, ficando assim por uns 5 minutos. De repente, uma pancada! (nessa hora a gente pensa de tudo!). Perguntando o que era aquilo, fui informado gentilmente pela ferromoça que era um procedimento comum, quando a máquina desengatava do trem, ele avançava um pouco, eles arrumavam os engates e ele engatava de ré, no tranco! “Coisa simples”, pensei. Isso se repetiria por mais de 8 vezes ao longo da viagem, inclusive de madrugada.

Aproveitando que o trem estava parado, fui tirar a água do joelho. Um banheiro razoavelmente grande, com um espelho, torneira com água, limpinho, com toalha pra enxugar as maos e lixinho. Quando vi o vaso, comecei a rir descontroladamente. Nao tinha fundo, e podia ver os trilhos lá em baixo. Esgoto natural! Vamos fazendo as necessidades ali mesmo, e contribuindo para adubar a ferrovia! Muito prático! Comentando com a Therese, ela me disse que até há poucos anos era assim na Europa também! Aqui é desenvolvido ou lá é atrasado?

E o trem seguia viagem. Ate esse momento, eu, que estava meio com o pé atrás, nao havia ainda parado para observar as pessoas que estavam no trem, e comecei a faze-lo. Mais inspiraçao para “A Ira dos Incas”! Desde o empresário gordo que comprou duas poltronas para viajar deitado, ao jovem mórmom que iria conhecer mais tarde. Mas, enquanto nos dirigiamos ao vagao restaurante (tava mais para vagao-cantina-de-cursinho!), eu e Therese nao pudemos deixar de observar com uma pitada de admiraçao o que subentendemos ser uma familia. Uma senhora e duas meninas, dois senhores beirando os 60 anos e um rapaz entre os 25 e 30. Elas vestidas IGUAIZINHAS umas as outras, com vestidos de mesmo tecido (preto, com flores vermelhas e verdes), estilo mamae-e-irmas-do-Joaquim-o-portuga, com lenco preto da cabeça, meias pretas acima do joelho e cara de papai-morreu-hoje! Os homens com macacoes azul marinho, daqueles que os camponeses de filme americano da guerra civil usavam, com o cabelo esgarçado e cara de judeu-fugindo-de-Hitler-e-refugiado-na-Europa-Central! Uns tipos inesquecíveis, que somados ao barulho do trem e aquele aspecto todo, me levaram por um instante pra dentro da “Lista de Schindler” ou algum outro filme do tipo.

Perto das 19:00, já escuro, o maldito que colocou a equina funkeira resolveu colocar um filme (é, tinha uma TV em cada vagao e um video escondido nao sei onde!). Dado seu gosto anteriormente verificado, imaginei ser um filme do tipo (e época) de “Willow na Terra da Magia” ou “Rambo”. Era “Armaggedon”, com som original enm ingles e legendas em espanhol. Menos mal, gosto dos efeitos desse filme.Entre um solavanco e outro, uma parada e outra, fui assisitindo o filme até que o trem parou e as poucas luzes que estavam acesas no trem se apagaram. Havia caído o cabo do carro que abastecia a eletricidade. Foram quase 30 minutos parados no meio do nada, num breu de gelar os ossos. Como queria saber o que se passava, saquei minha lanterninha (nao disse que seria util?) e fui bisbilhotar. Era tranquilizador ver os funcionarios todos com cara de susto, correndo de um lado para o outro, dizendo aflitos: “Nao se preocupem, isso é normal, isso é normal!”. Muuuuito tranquilizador!

Voltando a energia, corri para meu assento, pois queria ver o final do filme (é um mal hábito que tenho, ver mesmo as reprises até o final). Exatamente quando estavam acabando de perfurar o asteróide, a TV ficou azul, a marca de “<<” apareceu no vídeo, e simplesmente acabou. Isso mesmo! O filme nao tinha fim! Duas horas esperando, aguçando os ouvidos para poder escutar os diálogos, e O MALDITO FILME NAO TINHA FIM! Levantei-me indignado e fui ao carro-cantina para tomar um café. (se é que ainda teria café!)

(...to be continued)

Amanha: o trem - dia 2

Abraços,
LEO

Enviado à mailing por Leo em 26-09-2003